Quando o TikTok e o trabalhismo se encontram
O que a eleição de Rick Azevedo para a Câmara Municipal do RJ deixa (ou deveria deixar) de lição para a esquerda brasileira
À parte a representação política, todo processo eleitoral é, também, um processo pedagógico. As urnas têm algo a dizer, afinal.
Dito isso: as urnas deste domingo definitivamente tiveram algo a dizer ao PSOL do Rio de Janeiro.
Não apenas pelo desempenho de seu candidato a prefeito, Tarcísio Motta (com pouco mais de 4% dos votos), mas também — e sobretudo — pela inversão de expectativas na eleição para vereador: Babu, principal aposta para “puxar” os votos da legenda, sequer se elegeu, e o vereador mais votado foi Rick Azevedo, para a surpresa do eleitorado carioca e até da direção do partido.
Azevedo teve 29.364 votos — quase o mesmo número de votos do ex-prefeito Cesar Maia, a critério de comparação.
Mas como um “azarão” que ganhou notoriedade por causa de um vídeo viral no TikTok conseguiu quase 6 vezes mais votos do que um ex-BBB?
Não é a primeira vez que o PSOL-RJ aposta na categoria ex-BBB. Nas eleições de 2010, 2014 e 2018, Jean Wyllys se elegeu deputado federal durante três mandatos consecutivos. Foi de sua boca que saiu a inesquecível cusparada em Jair Bolsonaro durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff.
Apostar em personalidades e celebridades costuma ser uma estratégia segura em votações para o Legislativo. É possível argumentar que Jean Wyllys não era só um ex-BBB, mas a verdade é que, em 2010, ele tinha acabado de se filiar ao partido e estava longe de ser um pesquisador de Harvard.
Romário, por exemplo, é senador desde 2015.
Mas, desta vez, Babu não conseguiu sequer se eleger vereador — e sua votação ficou muito aquém do que era esperado pelo partido. Mas por quê?
Muitas razões podem explicar isso: desde uma campanha enfraquecida justamente pela ideia de que a fama de Babu bastaria, até uma migração de votos de última hora para Tainá de Paula (PT), vítima de uma tentativa de atentado, há poucos dias das eleições, que certamente mobilizou uma parcela significativa do eleitorado de esquerda na cidade.
Mas o fato é que a fama de Babu não bastou. E o maior puxador de votos do PSOL acabou sendo o “azarão” Rick Azevedo, fundador do Movimento VAT (Vida Além do Trabalho).
Tanto a derrocada de Babu, quanto a votação expressiva de Azevedo, escancaram algo (que deveria ser) claro, e não apenas para a direção do PSOL do RJ, mas para toda a esquerda brasileira: estamos em um novo ciclo político.
Talvez a famosa cusparada de Jean Wyllys em Jair Bolsonaro tenha sido o último ato espetacular de dignidade de um ciclo político que se encerrou com o impeachment de Dilma Rousseff — e não apenas porque se tratou de um golpe de Estado perpetrado pelo Congresso Nacional sob o comando de Eduardo Cunha, mas sobretudo pelo que ele possibilitou em seguida.
Em uma janela de menos de dois anos, Michel Temer implementou uma série de mudanças estruturais que aprofundaram a precarização do trabalho e a austeridade econômica no Brasil: notadamente a reforma da Previdência, a reforma trabalhista e o teto de gastos.
O governo Bolsonaro deu continuidade a esse processo, e não é como se o atual governo, que tem até sua própria versão do teto de gastos, estivesse se esforçando para revertê-lo.
Não se trata apenas de uma disputa ideológica: essa nova fase do capitalismo, implementada por governos em todo o mundo através de reformas, impulsionada pela plataformização do trabalho e pelo capitalismo semiótico e acelerada pela pandemia da covid-19, tem impacto direto na vida de todos nós.
A vida efetivamente piorou. A percepção geral é de que tudo está mais caro e estamos trabalhando mais. Estudos apontam que dormimos menos. Temos menos direitos trabalhistas, e comprar um imóvel — ou mesmo um carro — está se tornando cada vez mais difícil.
E a resposta mais imediata a essa nova fase do capitalismo é… mais capitalismo. Apostas online, marketing digital, criptomoedas e coaches de toda sorte proliferaram nos últimos anos — especialmente após a pandemia — , e circularam amplamente através de algoritmos de redes sociais com o TikTok, o YouTube e o Instagram.
Foi nesse cenário que surgiu Pablo Marçal — um fenômeno típico desse estágio do capitalismo. Não vou me estender muito sobre Pablo Marçal porque já escrevi extensivamente sobre isso na primeira edição desta newsletter (que você pode ler aqui), mas o fato é que, sem uma audiência ávida por enriquecimento rápido e renda passiva — e sem um sistema que tenha moído completamente as oportunidades de ascensão social e econômica dessa audiência em primeiro lugar —, fenômenos como Marçal jamais existiriam.
O ponto é: por piores que sejam as respostas, não é difícil encontrar a direita efetivamente respondendo aos anseios da população diante do aprofundamento do capitalismo tardio. Basta abrir o TikTok ou o YouTube (ou o X, se você tiver uma VPN e um nível razoável de tolerância ao nazismo), ou mesmo olhar para o sujeito que ocupa a presidência da Argentina: há crypto bros, ancaps e coaches por toda a parte.
Mas… aonde está a esquerda? Como a esquerda está respondendo a isso?
Bom… ela meio que não está. Pelo menos não da forma que deveria. Alguns diriam até que ela está morta.
(Mas ela segue produzindo ótimos memes, devemos admitir)
Movimento VAT e a retomada do trabalhismo
A votação expressiva de Rick Azevedo no Rio de Janeiro, contrariando até mesmo as expectativas de seu partido, deve ser interpretada de forma inteligente pela esquerda: há uma demanda clara e urgente pelo retomada do trabalhismo e por pautas como o fim da escala 6x1. Elas representam uma resposta apropriada à atual fase do capitalismo e a forma como ele se estrutura, colonizando nossa atenção, nosso tempo e assassinando até nosso direito à preguiça.
Além disso, o VAT ocupa também uma importante lacuna nas redes: a esquerda ainda enfrenta sérias limitações em relação à disputa da economia da atenção — e isso se deve, em partes, ao fato de que ela não soube adequar sua abordagem ao tempo presente e à própria natureza da dinâmica das redes.
É claro que podemos fazer um debate complexo a respeito disso, mas a verdade é que dificilmente você vai conseguir convencer o eleitor médio sobre seu ponto de vista, qualquer que ele seja, falando sobre Cuba ou sobre a União Soviética. Não por acaso foi investido tanto dinheiro em propaganda e até mesmo em assassinatos em massa de comunistas. E veja bem: é claro que reivindicar a História é importante, mas precisamos simplesmente levar em consideração a ordem de prioridade das necessidades da população: pessoas têm necessidades fisiológicas, reais, materiais; antes de posicionamentos ideológicos. É criminosa a forma como o complexo militar-industrial dos Estados Unidos está patrocinando o genocídio do povo palestino, ou o embargo econômico feito propositalmente para empobrecer a população venezuelana porque seu governo já almejou ter soberania nacional e detém uma quantidade desumilde de barris de petróleo; mas o que é a maior prova do sofrimento provocado pelo sistema capitalista senão aquele que você sente na própria pele?
Não à toa, o Movimento VAT surgiu justamente através de um vídeo viral no TikTok, em setembro do ano passado. Não foi através de uma dissertação de doutorado, de um manifesto assinado por artistas e acadêmicos, de um podcast e nem de um react do Aqueles Caras — mas sim de um vídeo no TikTok.
No começo desta newsletter, eu disse que Rick Azevedo ganhou notoriedade por causa desse vídeo — mas isso não é verdade. Ele ganhou notoriedade porque soube aproveitar o momentum provocado pelo seu vídeo em uma audiência engajada para criar um movimento em torno dele e se lançar como uma liderança disposta a organizá-lo.
Já ouvi algumas críticas de que ele estaria “personalizando” demais o VAT, mas a última década (e especialmente estratégias como o black block e o anonymous e movimentos como o Occupy e Junho de 2013) já deveria ter ensinado a esquerda que construir movimentos sem lideranças está fadado ao fracasso.
Se Rick tivesse optado por não se colocar à frente do movimento, ele não teria sido o vereador mais votado do PSOL-RJ nas eleições municipais de 2024, e talvez você jamais soubesse da existência do VAT. É importante que movimentos surgidos em redes sociais fabriquem lideranças que possam disputar eleições — a extrema-direita descobriu isso há mais de dez anos atrás, com o MBL, mas a esquerda parece ainda não ter assimilado completamente as novas dinâmicas de organização e comunicação política impostas pelo atual estágio do capitalismo.
E num cenário de terra arrasada , cabe à esquerda compreender o significado da eleição de Rick Azevedo e a importância que o Movimento VAT pode ter para ajudar a reorganizar o campo político da esquerda e deslocar o debate de volta para um novo tipo de trabalhismo — que já provou ter aderência tanto no TikTok, quanto nas urnas.
Afinal, não vivemos para trabalhar, mas sim para viver. E viver com dignidade. Essa é a luta do Movimento Vida Além do Trabalho — uma luta tão óbvia quanto urgente.
Você pode assinar a petição do VAT pelo fim da jornada 6x1 aqui.
E pode acompanhar o trabalho de Rick Azevedo em seu site e seu Instagram.
Excelente análise. No caso do Babu, é mais um candidato com a agenda totalmente voltada pra cultura que não é eleito. Toda eleição tem uma aposta da cultura que não vai pra frente e que, muitas vezes, também não volta na próxima